Nos últimos três anos, a revista vem enfrentando o boicote
do poder público, a partir do golpe de 2016 que derrubou a ex-presidenta da
República Dilma Rousseff, e também dos anunciantes da iniciativa privada, que
cortaram do dia para a noite o financiamento da revista para não "melindrar" os
presidentes que vieram na sequência, a exemplo de Michel Temer e Jair
Bolsonaro.
Editor-chefe da Carta Capital, o jornalista Sérgio Lírio
participou nesta sexta-feira (29) da abertura do seminário "Os desafios
da comunicação nas administrações públicas" que acontece até sábado (30),
em Salvador (BA).
Antes da mesa em que falou sobre "como se comunicar
com a sociedade", ao lado das jornalistas Geórgia Pinheiro (editora do site
Conversa Afiada) e Cynara Menezes (editora do blog Socialista Morena), Sérgio
Lírio concedeu entrevista ao portal da agência Saiba Mais /
Barão de Itararé.
O jornalista falou sobre formas de financiamento, os
desafios da mídia progressista, a nova fase da revista Carta Capital e a
importância da defesa da liberdade de expressão e de imprensa em meio aos
ataques de um governo de extrema-direita no Brasil.
Confira a entrevista:
Saiba Mais ? Que caminhos a mídia
progressista precisa seguir para sobreviver em tempos de golpe e de ataque à
democracia?
Sérgio Lírio - O problema do financiamento não é
apenas dos meios progressistas, mas um modelo de negócio que faliu, acabou. Se
chegou a uma formula que você tinha leitores, assinantes, telespectadores que
compravam um produto? e pelas empresas especializadas você tinha um número,
batia na porta dos anunciantes e conseguia receita, vinda dos leitores que
compravam o produto e dos próprios anunciantes. Isso em qualquer parte do
mundo. Em São Paulo ou em Osaka, no Japão, era um modelo geral de sustentação
desse negócio. Isso está se perdendo porque você tem uma mudança no hábito do
consumo de informação, de entretenimento. Entraram modelos para competir nesse
jogo que são infinitamente mais poderosos, que são o Facebook e o Google. Se
pensar de forma geral, a receita que antes iam para os meios de comunicação
foram parar nessas redes sociais. Isso é um problema grave, afetou a forma de
produção. Então os veículos, sejam eles progressistas ou não, tem o caminho que
é o de convencer que o jornalismo é importante para a democracia nas relações
humanas e sociais. E que é preciso financiar isso, pagar pela notícia.
O que você sugere?
Uma forma mais provável, há uma discussão no mundo inteiro,
é algum tipo de financiamento, um fundo público de financiamento dos meios de
comunicação. Uma verba que seria distribuída de forma mais equânime, mais
igualitária para você ter mais diversidade de opinião.
Verba federal?
Federal, estadual, municipal, teria que ter uma discussão
geral de como financiar. Não é mais possível depender só de (alguns) mecenas. O
que vejo em termo de possibilidade é prestar um serviço relevante, recuperar o
sentido público da função pública do jornalismo e convencer o público de que é
preciso financiar. Hoje os modelos que mais se sustentam na internet, com muito
mais dificuldade que no passado, são os modelos de assinatura. As pessoas estão
percebendo com a chegada desses governos de ultradireita, xenófobos, as
máquinas de fake news, que é importante recuperar esses valores básicos, levar
ao indivíduo a verdade possível, mediada. Eu só vejo esse caminho. Primeiro,
fazer um bom trabalho, bem fundamentado e, segundo, a partir dele convencer o
leitor que notícia de graça não existe, que notícia de graça sempre vai pender
para a mentira.
Há algum modelo semelhante em outros países que se
assemelham a essa sua sugestão?
Há uma discussão mundial. Nos EUA menos porque sempre foi
uma coisa muito ligada aos mecenas. E não é o melhor modelo ficar refém de um
ou dois patrocinadores. Você tem alguns grandes dessa mídia nova comprando
jornais, como o fundador do IBAI que comprou o Washington post. Mas a França
tem um modelo que poderia ser replicado.
Como funciona?
Quanto maior for o veiculo de comunicação, menos verba
pública ele recebe. Há na legislação francesa um mecanismo para a apoiar a
pluralidade, uma distribuição de renda para buscar a diversidade. Não é só ter
meios de comunicação com força para fiscalizar o poder, mas ter meios de
comunicação que expressem pontos de vista diferentes da sociedade, que é o
grande problema do Brasil. Aqui não chega a ser um monopólio, mas é um
oligopólio que tem uma grande empresa (Rede Globo) que dita o jogo com sua
receita desproporcional. E você tem outras três ou quatro grupos no Brasil que
são satélites da Globo e são os grandes distribuidores de informação. Pensando
regionalmente, as principais TVs são canais ligados à Globo e geralmente
ligados a algum interesse político. É assim no Rio Grande do Norte e em vários
outros Estados do Nordeste, do Sudeste, quer dizer, políticos donos de meios de
comunicação ligados à Rede Globo, é assim que se constitui um poder. E veja que
na maioria dos jornais, a grande parte do conteúdo é suprida por duas ou três
agências do centro sul, com a presença de colunistas do Estadão, da Folha, do
Globo? então os jornais regionais acabam reproduzindo a visão de mundo
concentrada em São Paulo.
Na França isso não acontece?
Na França também aconteceu, você tinha jornais mais progressistas na França, de direita, reacionários, mas ainda há um esforço para se manter uma certa pluralidade. Não existe uma discussão mundial, mas eu pressinto que será necessária. Há uma discussão cada vez maior sobre a importância do jornalismo para a sustentação da democracia, para a sustentação dos estados nacionais, e não existe modelo de negócio na internet que favoreça os meios de comunicação. Mudou completamente a regra. Quando você tem duas empresas como o Facebook e o Google, eles passam a ser intermediários na distribuição da receita publicitária. Quando você tem o Youtube, você recebe uma fração muito pequena da receita, é o contrário do que acontecia. Então você está massacrando as empresas tradicionais de comunicação, mas não substitui por um modelo que permita o jornalismo florescer e, por isso, a mentira, as fake news e os boatos ganham. A maioria das noticias distribuídas hoje é fake news. Das 10 notícias que são distribuídas, nove são mentira.
A esquerda sempre criticou a Rede Globo e os veículos de
imprensa tradicionais. Hoje, tanto a Globo como a Folha de S.Paulo estão sob
ataque de Bolsonaro. A motivação do presidente é motivada por vingança, o que
deixa de ser curioso. Que avaliação você faz sobre a relação de Bolsonaro com a
imprensa?
Talvez o Bolsonaro realize um certo desejo da esquerda, que
é destruir essas empresas (risos), mas é uma disputa de poder, de vida ou morte.
A gente sabe a forma nefasta que os meios de comunicação agiram, a mídia
produziu isso e agora são mordidos pela serpente que eles ajudaram a criar. Não
é ter pena, mas preocupação. Isso não é bom. Outro dia fui dar uma palestra e
disse: "daqui a pouco vamos ser obrigados a defender a Globo". É um bom
aprendizado para a mídia. O Brasil é tão louco, parece tão com um hospício, que
os meios de comunicação tradicionais, ou de forma cínica ou de forma burra,
ainda não se atentaram por isso. Ficaram tanto tempo falando da ameaça da
esquerda, de que a esquerda queria controlar a mídia, que a maior ameaça para
eles é esse governo de extrema-direita, reacionário, boboca, com uma agenda que
eles gostam. Então eles gostam da agenda econômica de Paulo Guedes, mas estão
presos a essa coisa. Eu não acho nada divertido.
Como está a Carta Capital hoje? O que vocês estão
fazendo para se reinventar nesse cenário de ataque e de asfixia financeira?
Perdemos muita receita, a pública zerou e a privada também
porque vários anunciantes alinhados com Bolsonaro têm medo. Tirando uma ou
outra empresa privada, a maioria se afastou, mas estamos na tentativa de
produzir conteúdos regionais que nos ajudam a buscar outros anunciantes.
O que mais lhe chamou a atenção nessas mudanças que estão
acontecendo na área?
As vendas da revista em banca, o número de assinaturas, o
número de acesso ao site tem crescido, tem ajudado um pouco a segurar. Tem
gente que achava que nós iriamos morrer no dia seguinte, mas não morremos. E já
são três anos "a revista completa 25 anos em 2019. Eu digo para o Mino (Carta,
fundador da revista), que está com 86 anos, que a revista já chegou mais longe
do que ele imaginava. Não é uma leitura fácil, é uma leitura crítica, tem
problema de distribuição" é de papel e a gente sabe quanto fica difícil
produzir uma revista semanal e entregar. Desde o início dos anos 2000 as bancas
vivem uma mudança.
A estrutura de gráfica em geral, mudou. Hoje fechamos ao
meio-dia da quinta-feira. Antes, há cinco anos, fechávamos na madrugada da
sexta-feira, até 3 horas da manhã, mas era desvantagem em relação a outras
revistas, que anteciparam a distribuição. Tem um detalhe: boa parte das bancas
do Brasil abre no sábado e fecha ao meio-dia do sábado e não abre mais. Veja
que esforço colossal para produzir uma revista que fica na banca menos de um
dia e meio no momento de maior valor. Brinco falando o seguinte: a situação
hoje das gráficas é sinal de que o século 20 acabou. Antes as gráficas
funcionavam sete dias por semana, 24 horas por dia, mas não tem mais isso. Se
quiser imprimir alguma coisa no feriado elas pedem que você pague a hora extra
do funcionário. A Plural, que é a maior gráfica de São Paulo, tem 60% de
ociosidade. As bancas estão fechando, os canais de venda estão mudando. Ter
revista, produto impresso, é uma vitória. Daqui para frente, tudo o que vier é
lucro.
Um produto de papel, como uma revista semanal, será
viável até quando?
É raro ter empresa 100% online. Em qualquer negocio, não só
no jornalismo. A maioria é online e off-line. Você usa a estrutura da internet
pra alavancar algum negócio físico. Vários dos modelos que estão conseguindo
algum tipo de sustentação financeira lhe entrega alguma coisa física, seja um
brinde ou uma publicação esporádica. Eu não saberia citar um projeto que vive
100% do online. Tem um site americano chamado Político, mas é
sustentado por Mecenas. Mas todos os projetos são ligados. Tem um veículo
espanhol chamado El Diário, mas nasceu só na internet e de três em
três meses pegam um assunto, o Aborto na Espanha, por exemplo, e
transformam numa publicação tanto para atrair assinantes como anunciantes
novos. No Brasil, a receita que você perdeu no papel não foi compensada na
internet. É uma perda crucial. Para os meios progressistas têm sido mais difícil,
mas está sendo difícil pra todo mundo. O Estadão hoje é sustentado pelos
bancos, a Globo está cogitando fechar a revista época, a Abril se esfacelou, o
Globo está demitindo gente, ainda não existe um modelo.
A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) lançou
recentemente um relatório em que Bolsonaro ataca a imprensa, em média, duas
vezes por semana. Há profissionais da imprensa tradicional dizendo que a mídia
progressista e tradicional precisa se unir para lutar contra um mal maior, que
seria a liberdade de imprensa. Você concorda com isso?
Acho que tem que analisar caso a caso, mas tem que ter
defesa da liberdade de expressão e de imprensa hoje mais do que foi necessário
no passado. É um fenômeno muito parecido com o que aconteceu nos EUA. Bolsonaro,
em muitos aspectos, copia a estratégia do Trump. O negócio não é só o ataque
diário, mas como eles conseguiram criar um canal de comunicação com uma vasta
parte da população à base de mentiras e distorção da realidade, onde não é
possível dialogar porque tudo ali é calcado em mentira, ataque e ódio. Não tem
diálogo possível. Defender a liberdade de expressão é defender a racionalidade,
a discussão séria das coisas. Mas é sempre necessário ressaltar que a mídia
brasileira é parte desse processo, que a imprensa brasileira criou isso. Isso
que nós temos aí em grande medida é resultado do que a mídia tradicional
produziu. Que nós colhemos o que eles plantaram. Não é defender o meio ou um
profissional especifico, mas o jornalismo. Quando o jornalismo tiver sob ataque
é dever de todo mundo defender esses conceitos.
*Rafael Duarte é editor da Agência Saiba Mais e participa
da cobertura do Seminário "Os desafios da comunicação nas administrações
públicas" pelo Saiba Mais e Barão de Itararé
Foto: Camila Souza/Assecom-BA