País do insólito e dos escândalos

O tempo passa, o tempo voa. Embora até a instituição
financeira e a caderneta de poupança dos versos da propaganda famosa tenham
virado pó e pesadelo há muito tempo, o País parece inabalável e arraigado em
sua “cultura e tradição” de 
paraíso do insólito e dos escândalos.

Fatos que marcaram esta última e surpreendente semana de
maio de 2014 demonstram isso, sobejamente. E registre-se que não está incluído,
na relação, o anúncio inesperado e desalentador, na quinta-feira, 29, da
aposentadoria precoce do ministro Joaquim Barbosa. Ele deixa ao mesmo tempo, no
fim de junho que vem, a presidência do Supremo Tribunal Federal (cujo mandato
se esgotaria no final do ano) e o posto de membro singular da Corte Suprema do
Brasil, onde poderia permanecer, se o desejasse, por mais quase 11 anos. 

Este caso, é preciso repetir, não se inclui em nenhuma
das duas categorias citadas no título e na abertura deste artigo. As razões
pessoais alegadas pelo próprio Joaquim Barbosa para o seu afastamento são
dignas e aceitáveis, principalmente as razões de saúde. A situação se aplica
mais ao rol das perdas e danos gerais do Brasil destes dias.

Perdas e danos nos limites do Poder Judiciário e muito
além deles: aa guarda sem titubeios da Constituição à firme aplicação das leis
(a exemplo do que ficou evidente no caso do Mensalão); da sensibilidade
política, da inteligência, conhecimento e cultura, à conduta ética e inabalável
coragem cívica das personalidades marcantes. Retas e avessa aos salamaleques e
tapinhas nas costas.

Um doce de coco, de temperamento, evidentemente que
Joaquim Barbosa não é. Isso seria exigir demais, e já tem gente de sobra
fazendo esse papel por aí. O fato é: sua saída é um baque, cuja amplitude e
consequências ainda são impossíveis de avaliar, mas cujos efeitos logo o País e
a sociedade começarão a sentir e pesar. A conferir.   

De volta então aos episódios referidos no começo. 

No primeiro caso, o insólito da flechada do indígena na
perna do policial militar, durante os protestos em Brasília, nas imediações da
“arena” do Planalto. No segundo, o novo (sem novidade nenhuma)
depoimento blindado por todos os lados e sem contraditório, da presidente da
Petrobras, Graça Foster. Lastimável encenação, do começo ao fim.

O terceiro fato é o perfil jornalístico primoroso de
Paulo Cesar de Araújo ? autor da biografia não autorizada do cantor Roberto
Carlos ?, que acaba de lançar um livro mais explosivo ainda, narrando os
bastidores do processo que proibiu a venda de sua obra no País. Texto assinado
por Camila Guimarães e publicado na edição comemorativa do 16º aniversário da
revista Época. Neste caso, o insólito e o escândalo se entrelaçam a cada
página.

Lá pelos anos 70, quando a ditadura apregoava maravilhas
do “milagre econômico brasileiro”, eu trabalhava no Jornal do Brasil.
Gostava de tirar uns dias a cada ano, para viajar pela Argentina e Uruguai. Ver
profissionalmente e viver pessoalmente a vida naqueles anos loucos, nas duas
margens do Rio da Prata, entre Buenos Aires e Montevidéu.

Na época, regimes discricionários e opressivos dominavam
praticamente todos os principais países da América Latina. Sobre essas nações,
na mais ampla e vergonhosa cumplicidade, sobrevoavam livremente os
“especialistas” da Operação Condor, uma das mais terríveis e
desumanas experiências de repressão, interrogatórios e torturas em qualquer
tempo. Nas funduras dos regimes, mortes, desaparecimento, choro e ranger de
dentes.

Ainda assim, havia resistência e esperança. Temperadas
com bom vinho, ótima carne e muita utopia, que regavam conversas e
“informes” clandestinos nos cafés, bares, hotéis, estâncias e feiras
de antiguidades. Mal comparando, algo parecido com aqueles legendários e
incríveis personagens do filme Casablanca, um Cult universal do cinema.

 Aliás, para mim,
a romântica capital uruguaia sempre se constituiu em uma espécie de Casablanca
da América do Sul. Sem Bogart, Ingrid Bergman e o pianista Sam, evidentemente.
Fascinava-me em Montevidéu aquele ambiente de conspiração política dos exilados
que lá se abrigavam, misturado com as lembranças saudosas e comoventes de seu
País, do outro lado da fronteira, mas inalcançável para eles. Coronel Dagoberto
Rodrigues e dona Lourdes (falei sobre eles por telefone recentemente com o
poeta Thiago de Melo, emocionado na outra ponta da linha), jornalista Paulo
Cavalcante Valente, Leonel Brizola, dona Neuza Goulart e tanta gente mais.

Paulo Valente sempre me dizia nas conversas do exílio:
?Baiano, uma coisa que me espanta nas notícias do Brasil é a capacidade
inesgotável de produzir fatos insólitos e de absorver escândalos. Cada semana
um escândalo novo e maior substitui o anterior e tudo segue no vai da valsa?,
dizia o jornalista alagoano/carioca, que embarcara com Brizola nas primeira
levas de exilados brasileiros para o Uruguai.

Recordo ao ler a reportagem da Época sobre o livro de
Paulo Cesar de Araújo, “O réu e o Rei ?minha história com Roberto Carlos
em detalhes”. Um desses detalhes narrados pelo autor é emblemático. Ao
final do julgamento, depois que os advogados da editora Planeta aceitaram o
acordo que proibia a venda do livro sem consultar Araújo, o juiz Térsio Pires
tirou de uma bolsa um CD de sua autoria e entregou a Roberto Carlos. ?Também
sou cantor e compositor, com o nome de Thé Lopes. Gostaria muito que você
ouvisse e desse sua opinião sincera?.

Mais não digo, nem precisa. A não ser que o ministro
Joaquim Barbosa vai fazer falta ao deixar a Corte. Muita falta. (Vitor Hugo
Soares/Tribuna da Bahia)

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