Um olhar demorado sobre o governo nos últimos 15 anos de
quem esteve por lá nos 15 anos anteriores. Nada escapa ao ex-presidente do
Banco Central e ex-ministro da Fazenda Pedro Malan.
Avesso a entrevistas, Malan falou longamente sobre [Uma Certa Ideia de Brasil],
nome do livro que reúne artigos seus publicados no jornal O Estado de
S. Paulo entre 2003 e 2017.
Não se furtou a comentar o que parece ser um certo desconforto com a
insistência do governo Lula em tratar os avanços do país como tivessem começado
em 2003. Mas falou dos ganhos obtidos no período e também sobre as inúmeras
vezes em que alertou, em seus artigos, sobre o perigo dos gastos excessivos.
Às vésperas das eleições, rechaça autoritarismos e
salvadores da pátria e avisa: a história é um infindável diálogo entre passado
e futuro. Portanto, a [memória do futuro] exige a memória do passado.
O cenário de inflação e juros baixos veio para ficar?
Malan – O fato de termos derrotado a hiperinflação não significa que a inflação
muito baixa tenha se incorporado ao DNA do Brasil. Mas a situação é muito mais
favorável do que a da Argentina e da Turquia.
Temos combinação de superávits na balança comercial, déficits reduzidos em
conta-corrente, reservas de US$ 380 bilhões e investimento direto que continua
fluindo. O investidor chinês diz que está olhando horizonte de 25, 30 anos
porque acha que o Brasil vai conseguir equacionar seus problemas. Acho que eles
estão corretos. Mas há urgências.
Qual é a questão mais urgente?
Malan – Lidar com a situação fiscal, e há um grau razoável de busca por
convergências possíveis. O Brasil é uma sociedade de massas urbana, com
legítimas diferenças de opinião e conflitos de interesse.
Há duas formas de lidar com isso: uma é buscar soluções negociadas de
compromissos, pois estamos em uma democracia. A outra é o regime autoritário,
que, por não ter de lidar com o Congresso e o Judiciário, pode, aparentemente,
ser mais eficaz no tipo de demanda que ele resolve atender. Mas não é solução
sustentável ao longo do tempo. A ideia de que é possível um messianismo, um
salvador da pátria, não serve para o Brasil de 2018.
Pressões por mais gastos não viriam da necessidade de
inclusão de uma população gigante cuja maioria estava alijada do crescimento?
Malan – É uma legitima pressão numa sociedade democrática. Mas de 1991 a 2016,
o gasto público passou de 11 para 20 do PIB, em tentativas de responder a
vários tipos de demanda.
O problema é que, quando se faz isso de modo reiterado, com o gasto subindo
acima do PIB, se torna insustentável. A não ser que se aumente a tributação ou
o endividamento público, que é a tributação sobre gerações futuras.
A nossa sociedade tem uma visão muito cética em relação à ineficiência do
governo, mas, ao mesmo tempo, continua achando que ele deve resolver essas
questões, embora não queira aumento de imposto. São escolhas difíceis.
Os países europeus que hoje têm bom padrão de vida se mataram entre as duas
grandes guerras. Depois disso, conseguiram administrar esses conflitos sabendo
que era do interesse de todos fazer isso por meio de negociações.
Mas nós já nos matamos. Estamos no caminho das
negociações?
Malan – Acho que não temos alternativa se não tentar. Desistir de tentar é a
barbárie, na área de segurança pública, já visível. Isso tem a ver com problema
de prioridades na alocação de recursos escassos.
Não temos prioridades?
Malan – Achamos que tudo é prioritário. Sob algum sentido é. O Brasil que eu
quero é que tenha segurança pública, saúde, educação. Mas um governo tem
obrigação de dizer que recursos não são infinitos e, portanto, há escolhas
difíceis. Tem uma dívida com trajetória insustentável. Vamos ter que ter uma
sequência de superávits primários – a não ser que alguém queira dar um calote
na dívida ou reestruturá-la-, e isso exige coisas que precisam ser iniciadas
agora.
Por exemplo?
Malan – A reforma da Previdência. E, no curtíssimo prazo, reduzir a alta taxa
de incerteza sobre o que um futuro governo, que o povo escolherá nas urnas,
fará.
O motivo da incerteza é o PT? Ele não aprendeu no
governo?
Malan – Espero que sim, mas isso tem de se expressar nos termos da campanha.
Lula, sob certo sentido, está em sua oitava campanha presidencial. E continua
sendo fator determinante apesar de sua situação. Uma qualidade dele: é um
grande estrategista político.
Citando o escritor Ivan Lessa, o sr. diz que o Brasil se
esquece a cada 15 anos dos últimos 15 anos. Lula, com quase 40 das intenções
de voto, é mostra de esquecimento ou de lembrança dos últimos anos?
Malan – Pode ser as duas coisas. Tem lembranças, sim, e é óbvio que isso
precisa ser reconhecido. A decisão de consolidar os programas de transferência
de renda foi correta. Só faltou um pouquinho de generosidade de reconhecer e
não tratar como se tudo tivesse começado do zero a partir de janeiro de 2003, o
que não foi verdade. Mas o fato é que foi positivo. Mas muita pouca gente no
Brasil se dá conta de quão excepcional foi o período de 2003 e 2008 para o
mundo.
Mas pode variar de governo para governo o que pode ser
feito com esse bônus, não?
Parafraseando o próprio Lula numa entrevista que deu em 2009: [Nosso erro foi
tentar fazer muito mais do que era possível fazer com os recursos disponíveis
e, nesse processo, tivemos um enorme desperdício de recursos].
Acho que foram desastrosas as decisões de construir ao mesmo tempo quatro
refinarias no Brasil e comprar mais duas fora, de tentar construir a maior
indústria naval do mundo, etc.
Enquanto os termos de troca estão subindo, é possível atuar em várias frentes,
mas não é possível fazer isso para sempre. Não fui só eu, mas vários
economistas diziam que a situação que vivíamos a partir de 2012 era
insustentável. E, de fato, o desemprego chegou a 6 em junho de 2014 porque
estava um enorme [pau na máquina]. Mas aquilo teria implicações mais à frente.
O objetivo foi alcançado, mas foi uma vitória de Pirro.
No livro, o sr. cita a necessidade de sonhos e alianças.
Nosso grande problema são os sonhos ou as alianças?
Malan – Lideranças que sejam capazes de fazer esforço para juntar as duas
coisas. Tem um amigo que tem um livro que se chama [Você é do Tamanho dos seus
Sonhos].
Acho lindo isso, mas uma vez brinquei com ele: você deveria colocar [do tamanho
de seus sonhos e do grau de esforço, gana, garra e persistência que você dedica
para torná-los realidade]. Senão, parece que sonhar basta.
Parece que o sr. se ressente da falta de reconhecimento
do governo Lula em relação aos avanços ocorridos antes.
Malan – Eu não me ressinto. Eu digo no livro que, para o Brasil, seria muito
bom dar continuidade àquilo que estava sendo feito. A política que estava sendo
feita no início [dos governos petistas] foi submetida a um crescente fogo
amigo, mas foi ela que permitiu que o Brasil aproveitasse o cenário
internacional favorável.
O ponto de inflexão foi lá para março, abril de 2006, quando
saiu o Palocci e apareceu a história de que [gasto é vida]. Entre 2011 e 2017, enquanto o Brasil cresceu
0,5, em média, o resto do mundo cresceu 5.
O sr. diz que só em 1940 o PIB nominal americano voltou
ao nível de 1929. E o Brasil, quando voltará ao pico de 2014?
Malan – Não vamos recuperar o nível de renda antes de 2020 ou 2021. Não teremos
súbita explosão de crescimento. Em especial porque não há um vento a favor
internacional. Dependemos do investimento, do consumo, das exportações
líquidas. A situação pode mudar se conseguirmos restaurar o clima dos
investidores de que o Brasil caminha para resolver seus problemas.
O discurso do Temer quando assumiu foi que a volta da
confiança seria rápida.
Malan – Mas vieram outras coisas também. E faz diferença um presidente eleito – qualquer que seja o resultado das urnas. A escolha das pessoas é muito
importante e, nessa área, o governo Temer acertou, ao compor a equipe
econômica. Dizem especialistas que havia chance de aprovação da Previdência.
Mas ele foi atropelado pelas gravações.
Tivemos uma geração de economistas estudando inflação. A
próxima vai olhar o quê?
Malan – Implicações do desenvolvimento tecnológico sobre a demanda por trabalho
e grau de qualificação de mão de obra e seus efeitos sobre distribuição de
riqueza.
Se for convidado, vai voltar ao serviço público?
Malan – Você sabe qual é minha idade? [risos].
O sr. cita o escritor Jorge Luiz Borges e as memórias de
futuro, algo que pode vir a ser. Qual é a sua?
Malan – É um Brasil que tente compatibilizar a ideia de liberdades individuais,
menos injustiça social e eficiência operacional do setor público e maior
competitividade internacional no setor privado. Não é fácil. Muitos poucos
países do mundo conseguiram isso. (Flavia Lima, Folhapress)
Foto: -Zo-Guimaraes-Folhapress