Malu Fontes: Policiais miraram Geovane e atingiram a corporação

Dar um tiro no próprio pé chega a ser uma expressão
desrespeitosa com a vítima quando se trata de metaforizar a ação dos policiais
da Rondesp que sequestraram o jovem Geovane Mascarenhas, 22 anos, levaram-no no
porta-malas de uma viatura para uma das dependências da própria Rondesp, no
bairro do Lobato, e lá o torturaram e mataram com todos os requintes de
crueldade, culminando com a decapitação. Embora nada justifique tamanha
violência, é preciso lembrar que o rapaz foi abordado e sequestrado sem que
nenhuma razão houvesse, sequer, para que fosse preso.

Como se fosse pouco, os policiais acusados roubaram a moto e
o celular da vítima e, além de decapitar e incendiar o cadáver longe do local
da execução, arrancaram do corpo as áreas tatuadas da pele, para dificultar um
possível reconhecimento. Antes, desativaram os serviços de geolocalização da
viatura, mecanismo obrigatório justamente para servir como dispositivo de
controle e evitar esse tipo de irregularidade por parte de policiais utilizando
veículos da corporação.

Os 11  envolvidos no
caso podem ser ases da violência, nada vai trazer Geovane de volta   à vida, mas ainda resta apostar na burrice
de agentes do estado que agem assim acreditando que podem driblar tecnologia.
Graças a imagens de câmeras do circuito de segurança da rua onde a vítima foi
abordada, associadas ao fato de dados do GPS da viatura, mesmo desativado,
serem armazenados em um local seguro e distante, foi possível reconstruir todo
o trajeto e dar um desfecho ao caso.

Além de produzir um episódio dos mais bárbaros da crônica
policial baiana recente, os policiais envolvidos no caso deram um tiro não
apenas no pé da Polícia, como instituição, mas na cabeça inteira da própria
corporação, a Polícia Militar. Num coletivo de milhares de homens e numa
sociedade marcada por índices de violência inaceitáveis, onde dia sim e outro
também bandidos cometem atrocidades, periga a sociedade começar a não ver nada
demais na atitude de funcionários públicos dementes de perversão capazes de
arrancar a cabeça e a pele de um rapaz simplesmente porque sentiram vontade. Se
soubessem se expressar, os 11 homens, agora sem nenhum segredo, certamente
repetiriam Jânio Quadros com e como cinismo e farsa: fi-lo porque qui-lo.

Povo fardado

Como no poema Mãos Dadas, de Carlos Drummond de Andrade, [não
nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. O tempo presente é feito de muitas
estranhezas, mas não a ponto de ver e aceitar como normal a sociedade
aplaudindo policiais que defendem ou praticam logísticas de bandidos. O Geovane
de ontem pode ser um amigo ou um familiar seu no futuro e é bom não duvidar.
Tem sido comum nas redes de troca de mensagens a circulação de vídeos em que
bandidos matam e mutilam com crueldade indescritível alguns rivais. Mais
inquietante que essas imagens em si e sua brutalidade é o teor e a intenção
do  endereçamento. Quem envia sempre quer
dizer, mesmo que o faça de modo oblíquo: [veja como os bandidos fazem. Você quer
que a polícia faça diferente?] Sim, a Polícia não pode adotar como sua a
lógica, a prática e o comportamento do bandido.

Infelizmente, a sociedade está tão doente que há quem
ingresse na Polícia justamente para ter licença para agir como os matadores de
Geovane. Assim como também há, do lado de cá, hordas sociais urrando em louvor
a estes. Fala-se em despreparo, em falta de treinamento dos policiais, mas em
toda a família que se diz de bem há, hoje, alguém os instigando e pedindo
sangue nas ruas. Como ouvi de uma voz sensata recentemente, [a polícia é o povo
fardado].

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*Malu Fontes é
jornalista e professora de Jornalismo da Ufba

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