AS FARMACÊUTICAS E AS DROGAS – PARA OCIDENTAIS QUE PAGAM

Prolongar em alguma medida a vida e mitigar a dor e o
sofrimento das pessoas foram e devem continuar sendo os autênticos propósitos
do desenvolvimento de atividades medicinais e farmacêuticas. No entanto,
diferente de outros momentos históricos e configurações sociais, para o atual
momento do modo de produção capitalista isto deve estar rigorosamente subordinado
ao lucro.

É desta maneira que, abandonando qualquer pudor e se
afastando da miserabilidade das motivações humanistas como intuito da pesquisa
bioquímica, uma fala recente se coloca como emblemática da lógica em vigor.

Durante um debate promovido pelo diário londrino Financial
Times, o executivo chefe da Bayer, Marijn Dekkers (que também é um dos membros
diretores da General Eletric), assim respondeu sobre como a possível quebra de
patente por parte da Índia poderia afetar o modelo de negócios do grupo¹:

“Nós não desenvolvemos este produto para o mercado indiano,
sejamos honestos. Nós desenvolvemos este produto para os pacientes do ocidente
que podem pagar por ele?. O ?produto? em questão é o Nexavar, conhecido também
como Soferanib e utilizado no tratamento de câncer avançado do rim e do fígado.
Dekkers aproveitou ainda a ocasião para classificar o sistema indiano de quebra
de patentes de medicamentos como ?essencialmente roubo?.

Mesmo deixando de lado o importante vetor dos descompassos
de uma ?cultura? que ?prometendo a absoluta satisfação destas necessidades
imemoriais e, ao mesmo tempo, promovendo sua insatisfação constante ? tenta
convencer que a morte e todo sentimento de dor podem ser extinguidos, são
gritantes as contradições de um ?oba-oba? que pretende fazer esquecer as
limitações do acesso e da arquitetura de seu ?progresso?.

Longe de buscar satisfazer as necessidades humanas de forma
mais abrangente, os avanços da indústria farmacêutica orientam-se aferradamente
de acordo com a lógica da multiplicação do capital. Assim, necessidades da mais
elevada ordem sensível são tratadas no mesmo lugar que a compra de vestuário de
grife, nada mais ?natural?! O próprio desenvolvimento ?cultuado? está desenhado
por uma acessibilidade restrita e muito pouco pela vontade de saciar a
?humanidade? que dele poderia usufruir.

Portanto, voltando a Dekkers, vale perguntar por que é um
roubo a quebra de patentes se não havia interesse no ?mercado? indiano? Ele não
teria ainda, mesmo que inusitadamente, dado uma excelente resposta para o
problema do preço de certas drogas (que, vamos combinar, não são modelo de
automóvel): paga caro quem pode pagar caro e barato quem só pode pagar barato?

Não. Cada um deve arcar solitariamente com o preço proposto
pela corporação. É que só assim ela terá não apenas o retorno de seus
investimentos como felpudos lucros, que foram aliás o grande ensejo do que um
dia ainda fazia questão de exibir um verniz filantrópico.

A indignação de Dekkers, no entanto faz sentido. Ele é pago
para defender a possibilidade do aumento dos lucros acima de tudo. Vai que a
moda pega e outros países, eventualmente inclusive os ocidentais, começam a
derrubar as patentes: como é que fica o modelo de bussiness da Bayer?

Aliás, não será o modelo de negócios uma das causas
(deixando de lado os desafios propriamente farmacoquímicos) de uma doença como
a Aids, não ter encontrado a cura ou vacina até o momento?

Sejamos honestos como Dekkers. A menos para as grandes
corporações, que interesse há em superar enfermidades que, crônicas, podem
continuar rendendo vantagens econômicas? E, mais importante: como se
justificaria para a humanidade que o acesso a uma vacina como esta ficasse
restrito àqueles que pudessem pagar o valor arbitrado pela empresa que a
desenvolveu? Ou todas os Estados-nações arcariam com os custos em seus
orçamentos fiscais, ou esta alegada ?propriedade intelectual?, com tal calibre
de impacto, não seria tolerada enquanto monopólio de mercado de quem dele dispõe.

Fico imaginando ainda o que os cientistas que desenvolvessem
um antídoto assim considerariam disto: ?Celebremos, celebremos. Depois de longo
esforço, alcançamos este estupendo resultado. Sabemos, fomos motivados pelo
lucro, agora é esperar que os consumidores comprem a vacina pelo preço
estabelecido por nossos acionistas e de nenhuma forma vamos revelar este
segredo para o público, mesmo que as pessoas continuem morrendo do mal?.

Contudo não podemos esquecer aqui do cerne do argumento
habitual: ?Mas essas empresas investem, fazem muitas pesquisas, gastam muito
dinheiro em projetos que às vezes não levam a nada até inventarem uma droga
como essa, é justo que recebam dividendos por tudo isso?.

Nunca questionam o quanto as empresas devem lucrar e quem
deve pagar a conta. Sujeitos atomizados, necessariamente? Não se pode criar um
outro sistema para premiar a empresa ? que não o lucro, base de patentes que
encarece tantos medicamentos?

Uma vez mais o exemplo do Nexavar é precioso: o preço do
medicamento reclamado pela Bayer é de 65 mil dólares por ano para o tratamento
de um paciente. Com a quebra de patente pela Justiça indiana, ele passou a
custar 97 menos, algo em torno de 2 mil dólares ao ano. A Índia exige das
empresas farmacêuticas que querem operar no país a fórmula dos remédios para
certas doenças, como Aids e câncer ? a fim de que sejam produzidos livremente
por outras companhias, como a indiana Natco. As desenvolvedoras da fórmula
continuam recebendo um valor pelo uso da mesma, mas não estabelecem o preço que
intentam e se cria um mercado de genéricos.

Para os neoliberais, alternativas como essa abalam a ?fé? no
livre mercado e ao mesmo tempo o Estado não tem nada que se envolver com o
tema, ou com o que quer que seja considerado rentável. Claro que eles sofrem de
amnésia: antes de muitos negócios demonstrarem-se rentáveis, o Estado
desenvolveu ?a necessidade? e os meios de satisfação, retirando-se depois do
jogo. Isso porque o Estado, outra vez eles esquecem, é dirigido
predominantemente conforme os interesses dos grandes grupos de influência
econômica e ?socializa? os custos de arriscadas empreitadas e dos imensos
prejuízos daqueles que são ?grande demais para cair?. Como de praxe, o Estado é
mínimo para os pobres; para os ricos é garantidor.

Já é conhecido que as grandes farmacêuticas não dão a mínima
para o tratamento das designadas ?doenças negligenciadas?, aquelas que atingem
populações de rincões subdesenvolvidos e para as quais não se deve esperar
nunca uma cura advinda da livre iniciativa de mercado. Para sorte destes
desvalidos, o mínimo Estado ainda não está completamente zerado e aporta
recursos para instituições de pesquisa públicas como a Fiocruz no Brasil.

Esta instituição, com os parcos recursos que recebe, procura
contornar o problema de populações carentes e recentemente anunciou que está
próxima de alcançar a vacina para a esquistossomose, doença que atinge 200
milhões de pessoas no globo².

Como se não bastasse e com impactos bastante nefastos,
convertida em ramo empresarial no mundo da vertiginosa espiral competitiva, a
indústria farmacêutica exibe também os sintomas da ganância fraudulenta. Uma
notícia recente demonstra mais um entre tantos casos dessa febre.

Segundo relata a Cochrane Collaboration, uma organização não
lucrativa que reúne 14 mil acadêmicos, o Tamiflu (droga criada pela Roche a
propósito do surto da alcunhada gripe aviária) tem pequeno ou nenhum impacto no
tratamento de complicações advindas de gripe ou pneumonia. Além disso, os
métodos e resultados dos tratamentos clínicos à base de muitos remédios estão
eivados de pouca transparência³. Em suma, é preciso mais fé do que ciência para
que tudo funcione como se pretende.

Pesquisadores ao longo da história estiveram interessados em
desenvolver curas, substâncias e métodos de tratamento. Perseguiam o
conhecimento e buscavam satisfazer necessidades humanas. Alguns, por vaidade
intelectual certamente perseguiam também o reconhecimento público, mas isto
estava muito longe de se confundir com o esforço para multiplicar dinheiro.

Como bravo exemplo pode se tomar Edward Jenner. Hoje ninguém
duvida da eficácia do método de vacinação defendido por ele em combate contra a
varíola, uma das doenças mais nefastas de que já se teve notícia. Porém, poucos
sabem da dedicação deste homem para que isso sucedesse. Enquanto seu método
ainda sofresse ataques, Jenner vacinava pobres gratuitamente e se empenhava em
provar o benefício de sua descoberta. Passou boa parte da vida endividado, numa
Inglaterra que punia com cadeia este ?crime?. Não contou com o apoio de nenhuma
grande empresa e do Estado britânico. Ganhou, após muita comoção, dois prêmios
pecuniários em reconhecimento aos seus esforços e como forma de livrá-lo das
dívidas. Sem grandes apoios financeiros, Jenner lutou para nos deixar uma
grande descoberta com todo o poder de sua genuína livre inciativa, não fez o
que fez guiado pelo lucro.

Se todas as doenças causassem seus danos de acordo com o
saldo bancário do atingido é possível que estes questionamentos não se fizessem
necessários. Mas, ao que tudo indica, a maior parte dos vírus, bactérias,
degenerações e infecções ainda não apreenderam a discernir muito bem a lógica
do dinheiro antes dos seus ataques, embora a lógica do dinheiro tenha
apreendido muito bem a discernir os doentes afetados.

Imagem: A sede da Bayer em Berlin, na Alemanha (Foto: John
Macdougall / AFP)- 

Fala do executivo-chefe da Bayer permite decifrar lógica
fria da propriedade intelectual e das patentes ? e a razão de persistirem
incuradas certas doenças?

Autor:  Júlio Reis /do
site Outras Palavras em CartaCapital. (Pátria Latina)

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