Intencionalidade. Eis uma palavra que passou ao largo
da percepção dos faniquentos das redes sociais quando reivindicam para si o
direito de dizer o que deve ou não ser objeto de comoção. Antes mesmo que se
iniciasse a contagem dos mortos nos atentados da última sexta-feira 13 em
Paris, os magistrados da subjetividade alheia já puxavam suas armas verbais
estocadas de vento e sempre prontas para pipocar ocas na web.
Multiplicavam-se como procissões de formigas diante de
açúcar os brasileiros que perguntavam com ferocidade na web onde diabos os
compatriotas estavam com a cabeça para sentirem-se chocados com a carnificina
em Paris. Como e por que tanta comoção tupiniquim com Paris se aqui no quintal
uma avalanche de lama da magnitude que arrasou distritos e matou gente em
Mariana, Minas Gerais, continua a percorrer e a matar o Rio Doce, transformando
água pura em lama intoxicada de minérios que matam a flora, deixam dezenas de
cidades mineiras e capixabas sem água e representa uma tragédia ambiental sem
igual no Brasil? Nisso se resume a sentença estabelecida por uma espécie de
irmandade muçulmana do sentimento alheio: brasileiros aculturados, olhai e orai
por suas próprias tragédias e vítimas. Olhem para o lado. Paris é muito longe.
ESQUARTEJADOS
Para as pessoas que empacotam as coisas e cobram que os
demais ajam como manada e lhes sigam nas ideias tortas ou de mão única, o
mundo, a vida, é um compartimento de caixinhas. Nessa lógica, quem dá atenção a
uma caixinha o faz porque ignora ou quer destruir a outra. Ainda bem que os
sentimentos humanos ainda não estão (tão) esquartejados. Certamente a maioria
das pessoas que ficou chocada com o que pode o fundamentalismo terrorista fazer
contra o mundo não esqueceu nem ignora a tragédia ambiental que matou pessoas e
devorou a natureza em Minas e continua incontível e indomável matando um rio
rumo ao seu delta, na costa do Espírito Santo. Para quem é capaz de
compadecer-se pelo outro, as caixinhas nunca são excludentes. Há capacidade de
horrorizar-se com tudo e ao mesmo tempo. Em Marte pode até haver água, mas a
Terra é ainda a única opção de habitat humano e, nisso, parisienses e moradores
do distrito de Bento Rodrigues têm algo em comum.
O aspecto que não permite contra-argumento é a
diferença entre negligência e intencionalidade. Embora os laudos técnicos ainda
não tenham apresentado provas de que o rompimento das barragens construídas
para extração de minério em Mariana deveu-se a falhas na construção ou
manutenção atribuíveis à mineradora, só a perversão no grau máximo pode supor
que os empresários responsáveis pelas mineradoras reuniram-se e decidiram matar
os moradores de Bento Rodrigues e soterrar o distrito com lama e resíduos. Mesmo
que sejam culpados por uma sucessão de erros, isso tem nome. Negligência,
irresponsabilidade, etc. Em Paris, o choque cala fundo quando se esbarra na
razão da coisa: intencionalidade. Voluntarismo.
CHORUME
Dezenas de pessoas, representando milhares de terroristas
espalhados pelo mundo e que só pensam em multiplicar noites sangrentas como a
de sexta-feira, reuniram-se e provavelmente levaram dias e dias planejando-se
para realizar a obra mortal: matar, voluntariamente, certíssimos do que
queriam, o máximo possível de pessoas. Gente que nunca viram antes, gente
contra quem, pessoalmente, nada deveriam ter contra. Se ser contemporâneo de um
tempo em que algumas poucas pessoas saem de suas casas dispostas a morrer como
kamikazes para matar 129 pessoas (300 feridos, 100 em estado grave) não é razão
suficiente para emocionar-se ou horrorizar-se, ingênuo é quem pensa que a
igualmente trágica morte de um rio tocará corações e mentes. Que o digam os
mortos e insepultos rios Tietê e Pinheiros, cadáveres podres, escorrendo
diariamente chorume na maior e mais rica cidade brasileira, diante da
indiferença dos juízes das redes sociais.
* Malu Fontes é jornalista e professora de Jornalismo
da Ufba opinar.