Malu Fontes: o Tribunal da web e o cachorro de Zúñiga

Nos últimos anos, inaugurou-se uma nova esfera da vida
pública: a internet. Ou, melhor dizendo, instituiu-se na vida de quase todo
mundo a dimensão das redes sociais. Nela, estranhamente, pessoas comuns, homens
e mulheres considerados normais dentro de parâmetros consensuais, tornam-se, ao
menor estímulo, bestas-feras dispostas a desfilar um corolário de ofensas
inimagináveis. Diante de um post, de uma imagem, aquele amigo manso que
conhecemos há anos surge monstruoso, trucidando moralmente alguém que também
conhecemos, provocando algo entre a incredulidade e a vergonha alheia. Quase
sempre, o único pecado do atacado é ousar escrever qualquer coisa diferente do
que pensa qualquer juiz  do tribunal
virtual autoempoderado e armado de ferocidade até os dentes, diuturnamente à
espreita atrás de um teclado.

A semana começou, para o tribunal dos inquisidores das
redes sociais, com uma sessão de luto e uma carnificina moral, não só
simultâneas como também tendo em comum a mesmíssima causa: a lesão na coluna
vertebral de Neymar, provocada pela entrada agressiva do colombiano Juan Zúñiga
e que tirou o ídolo brasileiro da Copa do Mundo. Embora seja desnecessário
falar da dimensão do luto pela vértebra machucada de Neymar, é imprescindível
citar a composição do conjunto dos linchados pela manada enredada da web: o
próprio, Zúñiga, claro (contra quem o mínimo que se disse foi a pérola racista:
?só podia ser preto?), a ex-namorada de Neymar e mãe do seu único filho, a mãe
e a filha pequena do zagueiro colombiano e… quem mais? O cachorro do jogador,
atacado pelos brasileiros por não possuir, segundo aqueles que se manifestaram,
dotes estéticos positivos o suficiente.

No caso da mãe do filho de Neymar, as ofensas, sempre
reproduzidas pela imprensa como atribuídas a essa entidade coletiva vaga
chamada de ?internautas?, foram motivadas pelo fato de a moça ter postado
fotos, em uma de suas redes sociais, ao lado de uma amiga com pose e cara de
gente normal. Pela reação da manada, a moça teria que ter vestido preto,
vertido e registrado as lágrimas em close e manifestado luto eterno. Só assim
não teria deixado dúvidas sobre o seu estado d?alma diante do incidente.

Embora as redes sociais sejam um fenômeno recente e,
nesse caso, trate-se de um fenômeno de escala internacional, já que o episódio
relaciona-se a uma partida da Copa do Mundo, algum limite o tribunal das redes
vai ter que ter num futuro breve. Daí ser didático, sim, o fato de uma moiçola
baiana ter sido acionada pelos advogados do atacante Hulk, essa semana, por ter
postado uma montagem fotográfica onde não apenas aparecia com o atleta como
ainda reproduzia um diálogo fictício referindo-se a um encontro havido, às
saudades e a um encontro futuro. Acionada, teve que pedir desculpas, dizer que
era brincadeira e argumentar que várias outras mulheres estavam postando coisas
semelhantes. O que ainda não a livrou de um processo.

No entanto, algo moralmente grave, se comparado aos
posts de mulheres que manipulam fotografias amorosas com o calipígio Hulk, foi
a falta de sensibilidade e ética da enfermeira cearense que expôs a agonia de
Neymar. Ao ver o jogador estrebuchando de dor no corredor de um hospital, não
pestanejou: apontou a arma contemporânea que atende pelo nome de celular,
registrou a cena, sorriu, fez um vezinho de vitória arremedando Gisele Bündchen
e despachou o filmete para o mundo inteiro. Sim, foi demitida. Mas, numa prova
de que o tribunal da web tem leis muito particulares, o abuso da moça flagrando
o jogador urrando de dor num hospital passou quase em brancas nuvens. Pela iniciativa,
a moça foi menos atacada nas redes que o cachorro de Zúñiga.

(Malu Fontes)

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