Embora o último cangaceiro do bando de Lampião já tenha
morrido (há um mês, aos 97 anos), dificilmente haverá um nordestino que nunca
tenha ouvido uma referência à turma de Virgulino Ferreira da Silva, que nos
anos 20 e 30 aterrorizou o interior do Nordeste. A palavra cangaço é ainda tão
forte no imaginário nordestino que tem sido usada para nominar de novo cangaço
os bandos armados que hoje chegam às pequenas e médias cidades do interior do
país e, armados até os dentes, ameaçam a população, prendem as autoridades,
inclusive e sobretudo a polícia, disparam tiros para o alto e explodem com
bombas agências bancárias em assaltos cinematográficos apavorantes.
Há uma semana, no entanto, essas cenas, que só eram
vistas nas cidades do interior protagonizadas por assaltantes de banco e que
pareciam atualizar no presente o cangaço do passado, adquiriram o aspecto de um
levante popular na cidade de Amargosa,
a 220 quilômetros de Salvador.
Após um policial civil matar com um tiro na cabeça uma criança de 1 ano, durante uma caçada atrapalhada a um
suposto bandido que teria fugido pelo
quintal da família da vítima, a população transformou as ruas da cidade em
cenário de cangaço. Revoltada com o assassinato e pedindo justiça, a população
protagonizou um faroeste em tons mais intensos do que aqueles vistos nos
episódios de assaltos a banco. Encapuzados, moradores fizeram barricadas,
bloquearam ruas, incendiaram e depredaram mais de 16 carros, 40 motos, um
ônibus escolar e um caminhão. Além disso, saquearam todas as armas da
delegacia, soltaram os 14 presos e incendiaram o prédio, destruindo-o.
O clima na cidade está longe de arrefecer no que se
refere à indignação da população. No entanto, os detalhes que se sucederam ao
episódio só têm contribuído para que a
reivindicação por justiça cresça. Somente graças à imprensa soube-se que o
acusado pelo disparo que matou a criança, embora atue como policial civil em
Amargosa, tem nada menos que um mandato
de vereador na Câmara Municipal de Cachoeira. Como a mesma pessoa, sem licença
de nenhuma dessas duas funções, pode exercê-las simultaneamente é uma boa
pergunta, tanto se feita à Polícia Civil quanto se feita à Câmara de Cachoeira.
No meio do faroeste popular deflagrado pelo episódio,
coube inclusive ao prefeito de Cachoeira declarar uma pérola para a imprensa no
último final de semana. Disse que não conhecia o vereador. Sem desenhar fica
difícil compreender essa afirmação do prefeito. Ou, de repente, é mais óbvio do
que parece: como o acusado é policial civil em outro município que não aquele
que o elegeu vereador e onde deveria exercer um mandato, pode ser que nunca
disponha mesmo de tempo para comparecer às sessões na Câmara de Cachoeira. Daí
o prefeito nunca ter tido a honra de ser apresentado ao vereador armado. Ontem
foi anunciado o seu afastamento das funções parlamentares.
A delegada de Amargosa, que na confusão fugiu para
refugiar-se num hotel, também foi afastada do cargo. Em protestos nas ruas, os
moradores continuam cobrando a prisão do policial e a sua ida a júri popular.
Mas, pelo andar da carruagem, a segurança pública do estado parece não ter sido
capaz de dimensionar o que quer e o que pode uma população furiosa com a
associação entre violência, injustiça e impunidade. Não faltaram autoridades
colocando panos quentes, negando o disparo de tiros na casa onde a criança
morreu e escondendo os nomes dos policiais envolvidos. Um dia, todo povo cansa
de ser gado abatido e a linha que separa cidadãos comuns de cangaceiros de
ocasião torna-se invisível. (Correio/Malu Fontes)