Malu Fontes: memes, mimimis, veneno e Miami

Depois da guerrilha eleitoral que transformou os
brasileiros em nós, eles, os outros e aqueles lá, numa onda xenófoba jamais
explicitada nessa escala em função do poder de espalhamento das redes sociais,
tá difícil passar a régua na ressaca pós-urnas 2014. Mesmo porque o tabuleiro
do xadrez político-eleitoral se move com uma velocidade subterrânea para além
da imaginada pelos leitores e eleitores. Exatamente nesse instante, já,
vitoriosos e derrotados com tinta na caneta estão renovando o acervo bélico
para as eleições para prefeito daqui a apenas dois anos. Como a eleição começa
muito tempo antes das urnas, a guerra recomeçará para valer no máximo daqui a
um ano e meio, mas nas ruas. Nos bastidores, já está em pleno vapor.

Do lado de cá do poder, uma classe média intermediária,
aquela que não mora numa cobertura na Graça, mas também não sabe onde fica o
Alto do Cabrito, saiu das urnas ontem arrotando preconceito e referindo-se aos
?pobres? como se esses fossem um exército de mosquitos que transmitiram
Chicungunya para o país inteiro. Como essa parcela do eleitorado não se dá bem
nem com a própria língua portuguesa, não arranha um A em inglês (tanto que arrota
as vantagens de um celular da Apple chamando-a de êipôul) e não tem cacife nem
bala na agulha para anunciar o êxodo para Miami (ou, maiami, para que não
fiquem ambiguidades e achem que a grafia tá errada e soe como um me ame),
concentra sua artilharia nos pobres, esses invertebrados desinformados que
desgraçam este país. Para usar uma expressão usada explicitamente por Diogo
Mainardi, o Nordeste é uma região de bovinos.

Bem, com as coisas nesse nível, a dificuldade de passar
a régua não será pequena. Nunca na história deste país uma eleição provocou
tanta ruptura. O sonho lindo de se ter nas redes sociais o milhão de amigos de
Roberto Carlos levou um baque e 26 de outubro 2014 entrou para a história no
Brasil também como o Block Day. Foi um faxinaço. Gente desconhecida pregando
como Beatos Salus insanos foram defenestrados numa faxina que durou o dia todo.
O tom de novela mexicana daquelas reprisadas mil vezes nas tardes do SBT fez
com que famílias estremecessem, desejo de morte da presidente eleita fosse
manifestado por senhoronas com o maior jeitão de pé na cova e, creia-se, até
mãe deletou filho do Facebook e cancelou oficiosamente a guarda
compartilhada. 

Para que o mexicanismo novelesco ficasse ainda mais
rico, o povo que nunca se aproxima de uma página de jornal e não sabe a
diferença entre uma manchete e uma nota de erramos, passou a véspera e o dia da
eleição gastando o whatsapp para dizer que o partido da presidente Dilma havia
dado uma dose cavalar de veneno ao doleiro Youssef. Foi impossível não lembrar
de Adma (Kássia Kiss), a vilã de um novelão do passado (Porto dos Milagres,
2001). Ela carregava um anelão cheinho de veneno em pó, com a qual ia
despachando para o outro mundo cada um que lhe representasse uma ameaça.

Os autores desse folhetim eleitoral já haviam escrito
vários outros roteiros: Dilma Rousseff passou mal ao fim do debate do SBT
porque João Santana, seu marqueteiro, mandou, para comover o eleitor; e, com a
ajuda póstuma de mãe Dinah, diretamente do além, vaticinaram: na véspera da
eleição, o ex-presidente Lula fingiria uma enfermidade grave e seria internado
para comover o eleitor e chantageá-lo emocionalmente a votar em sua sucessora.

Ao final, não gostaram muito desse texto e preferiram a
dose cavalar de veneno enfiada goela abaixo do doleiro. Depois de tudo isso, tá
difícil recompor a pose e os afetos. Só se salvaram os memes. Os mimimis ainda
vão dar munição, e muita, para brigas familiares no próximo Natal e para os
amigos nos botecos após o terceiro copo. O Natal de 2014 será um encontro de
alto risco. É bom pensar nisso antes do champanhe ou da sidra.

Malu Fontes, jornalista/Correio

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