Segunda maior cidade da Colômbia teve episódio comparado à megaoperação brasileira com mais de 120 mortos; especialistas argumentam que transformação só veio a partir de ações de desenvolvimento socioeconômico
Após a megaoperação policial que deixou mais de 120 mortos no Rio de Janeiro, o presidente colombiano Gustavo Petro se manifestou nas redes sociais e classificou as imagens de corpos enfileirados na Praça São Lucas como “barbárie”.
Em publicação nas redes sociais, Petro afirmou que, “seguindo os passos de Bolsonaro, Cláudio Castro, com sua polícia do Rio de Janeiro”, deixou mais de cem mortos nas favelas do Rio, pontuando que a operação foi “semelhante à ocorrida na Comuna 13 de Medellín”.
A referência feita por Petro diz respeito às ações policiais que aconteceram na segunda maior cidade da Colômbia no início do milênio, com destaque para a controversa Operação Orión, iniciada em outubro de 2002.
Especialistas ouvidos pela CNN Brasil explicaram que o sucesso de Medellín em superar a violência veio – mais do que do combate direto ao crime organizado – a partir da tomada de medidas de investimento que permitiram o desenvolvimento socioeconômico da região.
“Cidade da eterna violência”
A professora de Relações Internacionais da Unifesp, Regiane Bressan, disse à CNN Brasil que “a luta em Medellín contra o narcotráfico e a violência se desenvolveu em várias fases”.
Entre o fim dos anos 1970 e início de 1990, a cidade ficou marcada pela atuação do cartel de Pablo Escobar, que tinha hegemonia sobre o tráfico internacional de cocaína.
É nesse contexto que Medellín foi considerada a “cidade mais perigosa do mundo” – uma reportagem da revista Time de 1988, por exemplo, chegou a usar o termo “cidade da eterna violência”.
Em 1991, foram registrados 6.349 assassinatos em Medellín – uma taxa de 380 homicídios por 100 mil habitantes.
“Então, nós tivemos primeiro uma fase de confronto direto que foi o desmantelamento do Cartel de Medellín de Pablo Escobar. Isso contou com forte apoio dos Estados Unidos”, pontuou Bressan.
A professora acrescentou que a queda do cartel de Escobar não encerra a violência local. O que se viu foi um aprofundamento de um conflito envolvendo as forças do Estado, guerrilhas e paramilitares.
Especialistas colombianos ouvidos pela CNN Brasil destacam que esse conflito armado interno é o ponto crucial que diferencia o que se passava em Medellín até o início dos anos 2000 e o Rio de Janeiro.
“A Colômbia, naquele momento, experimentava talvez o pico do conflito armado interno, em que grupos insurgentes como as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o ELN (Exército de Libertação Nacional) haviam alcançado uma presença territorial muito significativa e uma grande capacidade de operação militar, apesar de legitimidade política muito precária”, pontuou Jaime Zuluaga, cientista político e professor emérito da Universidade Nacional da Colômbia.
O professor Zuluaga explicou que “do outro lado, estavam grupos paramilitares muito poderosos, que também controlavam grande parte do território nacional, e contavam (e continuam contando aqueles que sobreviveram) com apoios importantes das elites”.
O departamento de Antioquia, cuja capital é Medellín, ele pontuou, é “um caso emblemático” do poder alcançado pelos paramilitares na região, que mantinham relações ilegais com as elites regionais e municipais.
“[Os paramilitares] operavam as chamadas “oficinas”, que eram centros urbanos de controle sobre a população, em que articulavam redes de poder com as elites políticas, econômicas e sociais, bem como com os setores populares e servindo como elo com o tráfico de drogas”, disse Zuluaga, acrescentando que esses grupos eram diversos, heterogêneos e travavam disputas entre si.
O professor também esclareceu que há décadas já existiam setores das forças do Estado colombiano que atuavam em conjunto com os paramilitares em diferentes ações contra as guerrilhas.
“Medellín, portanto, era palco de um confronto no espaço urbano entre milícias guerrilheiras, particularmente o ELN, grupos paramilitares e outras organizações armadas que operavam em Medellín, que também era um epicentro de atividades de narcotráfico. Talvez isso marque uma diferença fundamental em relação à situação no Rio de Janeiro, porque aqui se tratava de um conflito armado interno com a presença de grupos insurgentes de natureza político-militar e um confronto com grupos armados ilegais cuja lógica de ação era fundamentalmente a produção e apropriação de capital”, acrescentou Zuluaga.
A cidade de Medellín fica no Vale de Aburrá, na região central da Cordilheira dos Andes, cercada por montanhas relativamente altas. Na encosta oeste da cidade, está a Comuna 13.
“É uma área popular onde as pessoas viviam em condições de extrema pobreza, em moradias muito precárias. Essas áreas foram locais de atuação de organizações paramilitares urbanas e das milícias das guerrilhas, principalmente do ELN, e também espaços de tráfico de cocaína intenso e outros mercados ilícitos”, pontuou Zuluaga.
Foi na Comuna 13 que o presidente Álvaro Uribe, nas primeiras semanas de seu mandato, em outubro de 2002, implementou a controversa Operação Orión para retomar áreas controladas pelas FARC e ELN – ação que o atual presidente Gustavo Petro comparou ao Rio de Janeiro.
O professor Oscar Palma explicou que a Operação Orión aconteceu em meio a uma política de segurança mais ampla, chamada de Política de Segurança Democrática.
“[A política] buscava não apenas enfrentar o narcotráfico, mas todos os atores armados do país, particularmente as guerrilhas e o seu controle territorial de muitas das regiões do país, sobretudo em zonas remotas”, disse à CNN.
O CNMH (Centro Nacional de Memória Histórica) da Colômbia classifica a Operação Orión como “a maior ação armada realizada em área urbana em decorrência do conflito armado” no país.
“A operação envolveu aproximadamente 1.500 pessoas e contou com a presença de homens e mulheres encapuzados. […] Paramilitares que haviam realizado trabalhos de inteligência prévios participaram da operação e acompanharam as forças de segurança em suas incursões e na captura de supostos colaboradores da guerrilha”, pontua o centro.
Não há um consenso sobre o saldo de vítimas da Operação Orión.
Segundo registros consolidados pelo CNMH:
- 17 pessoas foram executadas pelas forças públicas de segurança;
- 71 foram assassinadas por paramilitares que atuaram em conjunto com o Estado;
- 12 sofreram torturas;
- Mais de 80 ficaram feridas;
- 370 foram presos;
- 92 desapareceram;
No entanto, a UBPD (Unidade de Busca de Pessoas Desaparecidas) da Colômbia, que foi estabelecida pelo Acordo de Paz de 2016, aponta que 502 pessoas constam como desaparecidas na Comuna 13. Em toda Medellín, o número chega a 5.912.
Os números indicam os desaparecimentos forçados ocorridos durante o conflito armado na cidade desde os anos 1980 até 2016, mas as autoridades destacam que o ápice foi atingido na época da Operação Orión.
A Comissão para o Esclarecimento da Verdade, Coexistência e Não Repetição classifica a Operação Orión como “emblemática pelas formas de violência empregadas (prisões arbitrárias, detenções seletivas e subsequentes desaparecimentos), pelas inúmeras denúncias de irregularidades cometidas por agentes do Estado e pelo envolvimento de grupos paramilitares”.
Ao longo dos últimos 20 anos, quase 20 organizações de direitos humanos foram criadas, compostas por jovens, vítimas, ativistas, advogados e sobreviventes das operações militares na Comuna 13, com o objetivo de buscar a verdade, a justiça e a reparação.
“Muitas perguntas seguem sem resposta. Em particular, as graves violações de direitos humanos e que estão conectadas com os desaparecimentos forçados. Esses assassinatos equivalem a execuções extrajudiciais que ainda não se podem dar resposta aos sobreviventes”, declarou à CNN Jorge Restrepo, professor da Pontificia Universidad Javeriana e diretor do Cerac (Centro de Investigação e Estudos sobre Conflitos Armados, Violência Armada e Desenvolvimento) da Colômbia.
As autoridades colombianas acreditam que muitos dos desaparecidos possam estar enterrados em uma parte alta da Comuna 13, conhecida como La Escombrera (“Lixão”, em tradução literal) – considerada a maior vala comum do país.
Em dezembro do ano passado, após escavações de quase 40 mil m³ de terra, foram encontrados os primeiros restos mortais no local. Sete corpos já foram recuperados desde então.
“Durante décadas, mães, pais, esposas e filhos insistiram na necessidade de intervenção em uma área tão complexa para as buscas. Hoje, seus pedidos encontraram uma resposta concreta”, afirmou a UBPD em comunicado na época.
A ONG Corporación Jurídica Libertad afirmou ao jornal El Espectador que mais de 400 corpos podem estar em La Escombrera, cerca dos quais cerca de 100 seriam vítimas da Operação Orión.
Colômbia foi condenada internacionalmente pela Orión
Em outubro de 2023, a Colômbia foi responsabilizada pela primeira vez pela Corte IDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) por um desaparecimento forçado no contexto da Operação Orión.
Foi o caso do jovem Arles Edison Guzmán, de 29 anos. Ele e a esposa trabalhavam de segunda a domingo com a venda de frango assado na Comuna 13. No dia 30 de novembro de 2022, homens armados chegaram ao restaurante “Asados el 20”.
Guzmán e a esposa acreditavam inicialmente que se tratava de um assalto, mas eram paramilitares, que levaram o jovem para “responder a algumas perguntas do chefe”.
“Um deles me disse: ‘Não se preocupe, mãe, ele já volta’, mas eu respondi: ‘Não, vamos juntos’. Ele só disse: ‘Não, eu já vou, não demoro. Só quero que você saiba que eu te amo’”, disse a esposa Luz Enith Franco, em entrevista ao jornal El Espectador, em 2023.
Ele nunca mais voltou. Os familiares e grupos de direitos humanos acreditam que seu corpo esteja enterrado em La Escombrera.
A Corte IDH determinou que Guzmán foi vítima de desaparecimento forçado por paramilitares “que agiram em conjunto com a colaboração de autoridades estatais” durante o governo de Álvaro Uribe.
“Os crimes cometidos pelos paramilitares, neste caso, são atribuíveis ao Estado colombiano porque os eventos ocorreram em um contexto comprovado de relação entre agentes do Estado e grupos paramilitares na fase de consolidação da ‘Operação Orión'”, afirmou o tribunal.
O professor Zuluaga reiterou que “existiu uma aliança perversa entre a institucionalidade e a ilegalidade, entre os setores da força pública e grupos paramilitares – nesse caso para limpar a Comuna 13 das milícias guerrilheiras, o que foi efetivamente alcançado”.
Ele acrescentou que, após a operação, houve uma espécie de “paz pelas armas” imposta pelas forças de segurança que participaram da Orión e pelos paramilitares que atuaram em conjunto.
“A pior coisa que pode acontecer ao Estado é a perda de legitimidade por meio de alianças com forças ilegais e o uso indiscriminado da força militar em áreas civis, ao invés de desenvolver outras formas de controle sobre a população, se o objetivo for restaurar os direitos e garantir o Estado de Direito na região”, avaliou Zuluaga.
O professor Restrepo acrescentou que, apesar de após a operação não haver mais a disputa pelo controle territorial de Medellín, “há uma disputa fluida pelas fontes de renda ilegais” entre grupos criminosos menores da região, que permanece em partes até os dias de hoje.
O analista de internacional da CNN Brasil, Lourival Sant’Anna, aponta que, “a partir do massacre [na Operação Orión], é como se Medellín tivesse chegado ao fundo do poço e a cidade começou a reagir”.
Transformação de Medellín em “cidade mais inovadora” do mundo
Em 2013, Medellín, que um dia foi considerada a cidade mais perigosa do mundo, foi classificada como a cidade “mais inovadora” do planeta por uma iniciativa da organização Urban Land Institute com o Citigroup e o Wall Street Journal.
O professor Oscar Palma explicou à CNN que essa transformação não se explica particularmente pelas ações de segurança pública.
“A desarticulação geral, não somente na Medellín, dos grupos armados é um fator que contribui para isso. Mas o investimento, empreendedorismo, educação, desenvolvimento territorial são todos componentes que vão permitir mudar a cara da Medellín”, disse.
“Não é somente destruir o crime organizado. Não bastar prender, diminuir a criminalidade. É necessário muito mais, tem a ver com o desenvolvimento dessas regiões”, continuou.
“Nos meados dos anos 2000, há abordagens de segurança integral, que viriam a combinar a presença da Força Pública com ações sociais, ações urbanísticas, que são aquelas que vão conseguir reduzir os índices de violência e a presença do crime organizado em várias zonas da cidade durante toda essa década. De 2010 em diante, se dá uma consolidação muito mais clara”, completou.
O professor Jorge Restreppo destacou o papel da sociedade civil em “exigir segurança do Estado e não uma resposta violenta”.
“Com uma resposta violenta, não se constrói progresso social e econômico. Repressão violenta não gera segurança nem no curto, nem no médio, nem no longo prazo. Não gera condições para o desenvolvimento socioeconômico”, pontuou.
Ele acrescentou que, apesar dos contextos diferentes, essa talvez seja a lição que Medellín tem a ensinar ao Rio de Janeiro.
“É a participação da sociedade civil, das empresas, das organizações de defesa e promoção dos direitos humanos, da atuação da Força Pública que respeite os direitos das pessoas baseando-se na lei. Isso é essencial para poder construir segurança sustentável. Segurança para proteger, não para reprimir”, disse.
“Não é um processo que acontece em curto tempo. Não é um processo que depende somente da captura de criminosos e seus líderes. Requer muito mais. Requer um investimento muito grande por parte do Estado, do setor privado. Requer um trabalho muito grande também da comunidade, na cultura, nos valores, nas normas para virar a página da criminalidade”, complementou o professor Palma.
“É necessária a participação e aliança de múltiplos atores para conseguir reomper com as economias ilícitas e permitir que as comunidades participem também da definição de seu próprio futuro, com oportunidades que vão além das economias ilegais”, concluiu.
A professora Regiane Bressan avaliou que o “investimento massivo em infraestrutura e educação” levou a Colômbia a se tornar “a segunda maior potência da América do Sul”.
“Teve uma combinação de força policial, Justiça e fundamentalmente urbanismo social. Isso leva a dignidade, serviços públicos e oportunidades às comunidades marginalizadas”, disse.
O analista de internacional da CNN Brasil, Lourival Sant’Anna, destacou a criação, em 2003, do CUEE (Comitê Universidade Empresa Estado) – uma aliança estratégica para integrar empresários, diretores universitários, grêmios e governos locais e regionais no departamento de Antioquia.
“Foi algo totalmente espontâneo. Não foi nenhuma lei. As pessoas começaram a se juntar e conversar sobre o que fazer para melhorar a situação na cidade”, acrescentou, destacando a criação do teleférico que conectou as periferias de Medellín ao centro.
Um estudo de caso feito pela ONU-Habitat (Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos) considerou o chamado Metrocable como “um símbolo de regeneração urbana em Medellín e um dos poucos sistemas de teleférico utilizados para transporte público”.
“O Metrocable reduziu o tempo que os moradores de Santo Domingo levam para chegar ao centro da cidade. A viagem, que antes levava até duas horas de microônibus, agora leva sete minutos. A melhoria do acesso estimulou o emprego e a integração social. A atividade comercial aumentou 40%, com o surgimento de pequenos negócios familiares e restaurantes ao redor das estações do Metrocable. Há indícios de valorização imobiliária e dos aluguéis. Diversos bancos abriram agências na região, e o turismo se tornou uma fonte de renda inesperada, porém significativa”, completou.
No ano passado, Medellín alcançou o menor índice de violência em 40 anos.
A taxa de homicídios – que em 1991 era de 380 a cada 100 mil habitantes – chegou a 13,9, segundo dados de 2023. (Léo Lopes, da CNN Brasil, em São Paulo).
Foto: Kaveh Kazemi/Getty Images

