A ordem dos olhos de São Pedro

Recordo que fui conduzido ao sótão da casa de três pisos na
Rua do Bângala em que viviam os meus bisavós paternos. Sequer completara os
seis anos de idade e seria, naquela tarde, iniciado na Ordem dos Olhos de São
Pedro. O pé direito do sótão era alto apenas na zona central daquele piso
superior e ali, em círculo, estavam sentados, em cadeiras simples, meu avô
paterno, tios-avôs e uma ou duas pessoas de quem jamais soube a identidade. A
cerimônia foi rápida e constou de breve histórico da Ordem e do juramento de
adesão.

Hoje, passados tantos anos, constato que fui abusado naquela
tarde. Eles precisavam cumprir o rito e iniciar o primogênito da nova linhagem
no tempo recomendado para a formação de um novo irmão, processo que se
completaria quando o iniciado alcançasse a casa dos 30 anos. Eu, aos quase seis
anos, estava meio alheio daquela solenidade, satisfeito com o bacalhau baldado
que Aquilina servira no almoço e encantado com o que via nas prateleiras do
sótão. Lembro que levantei a mão, repeti o juramento e fui futucar os guardados
do sótão e maravilhar-me com uma ou outra ilustração que localizava entre os
papéis velhos. A história da Ordem, se é que me lembro, tem a ver com a Casa
Real portuguesa, onde antepassados da minha família paterna eram responsáveis
pela administração da cozinha. É, portanto, uma Ordem antiga, criada para
fortalecer ainda mais o poder absolutista e, devido ao tempo de existência e ao
conhecimento acumulado, tinha alguma importância naquele mundo de ordens de
todo o tipo.

A Ordem dos Olhos de São Pedro, do pouco a que tive acesso
porque não apreciei nutri-la, foi criada para regular a mobilidade social. Era,
vamos logo combinar, um foco de arrogância, preconceito e atraso. Recordo de
duas outras reuniões no mesmo local e com a presença das mesmas pessoas. A
primeira delas foi no ano seguinte àquele do rito de iniciação. Meu avô colocou
no meu dedo um solitário de gema faiscante e anunciou-me que o anel seria meu
porque a tradição estabelecia que ele permanecesse com o primogênito. Eu
deveria passá-lo mais adiante para o filho de uma prima, mas o anel jamais me
foi entregue. Chegou-me apenas a versão de que caíra do dedo de meu avô e
desaparecera no ralo. Tomara que, de fato, tenha sido assim, porque o anel em
dedo indevido é peça aziaga. Numa dessas reuniões, ouvi o relato de que o
segredo da Ordem fora usurpado por uma tia-avó. Explico: a Ordem dos Olhos de
São Pedro era exclusiva de homens. Porém, aquela tia, muito curiosa e teimosa,
escutava tudo e interpretava com imensa imaginação o que ouvia. A mantenho na
minha saudade com renovado sentimento de gratidão e admiração, mas temo que a
difusão que deu do que ouvira resultou num acidente de percurso para sobrinhas
e sobrinha-netas, porque o segredo, cultivado no meio masculino carecia de
adaptação para adequar-se ao universo feminino. Por certo não era esta a
intenção da tia, mas as discípulas ficaram com a feminilidade prejudicada e,
pior do que tudo mais, repugnaram o ato sexual. Essa situação será corrigida ao
longo do tempo porque mudanças ocorreram na cultura familiar ? as lições foram
descontinuadas ? e na genética dos descentes.

Cumpria 13 para 14 anos quando urrei na sala de refeições
daquela tia o meu desagrado com as contradições expostas naquilo que me parecia
ser o conjunto de lições que herdaria da família. Creio hoje que naquele
instante a variante feminina e apócrifa da Ordem dos Olhos de São Pedro
expulsou-me do universo mantido por elas. Sou, hoje, grato às mal-amadas porque
retiraram o pernicioso e maligno olhar sobre mim. Mas não comprometeram com a
ira delas o que me fora passado nas reuniões do sótão do sobrado do Bângala. Os
anciões da Ordem tomaram conhecimento do episódio ocorrido e tampouco aprovaram
meu destempero. Um deles me disse que o ocorrido não o surpreendera. Afinal,
meu pai agira de modo semelhante no final da década de 1930, quando alcançara a
idade dos 13 para 14 anos. O ancião não ralhou comigo e havia ternura na sua
voz e no seu olhar. Advertiu-me, no entanto, que a Ordem não poderia retirar
dois fundamentos que transferira para mim nas poucas ocasiões em que
participara da roda do segredo. Teria que conviver e administrar o poder de
matar sem uso de arma, com o uso apenas de ardilosas armadilhas de palavras.
Tampouco poderia ficar constrangido quando, após advertir por três vezes o
outro, vê-lo caminhar para o inferno.

Caminhando para os 70 anos, reflito sobre tudo o que se
passou e entendo, assim como deve ter entendido o meu pai, que a Ordem dos
Olhos de São Pedro não se reciclara. Permanecia no século XIX, no tempo do
Império, querendo manter os privilégios, murando com os olhos cheios de ameaça
e preconceito os passos de quem, tanto como os demais, têm os mesmos direitos. (Bahia Noticias)

Por Luis Guilherme Pontes Tavares