Volta do voto de qualidade no Carf é retrocesso e pode aumentar judicialização

O ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, anunciou nesta quinta-feira (12/1) um pacote econômico composto por
medidas tributárias direcionadas a diminuir o estoque de processos
administrativos do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf).

Pacote
de medidas anunciado pelo ministro Haddad não agradou a especialistas
Entre as medidas, está o programa Litígio
Zero, que permitirá aos contribuintes firmar acordos com o governo e pagar
débitos de até 60 salários mínimos de forma parcelada. Também foi estabelecido
o fim do recurso ao Carf para valores abaixo de R$ 15 milhões, de modo que, se
o contribuinte vencer em primeira instância, o litígio se encerrará
automaticamente.

E, entre todas as medidas anunciadas
por Haddad, a mais controversa é a volta do voto de qualidade nos julgamentos
do Conselho. Também conhecido como voto “duplo”, o mecanismo
estabelece que, em caso de empate em um julgamento, o desempate será
feito por um conselheiro que represente a Fazenda Nacional. Esse voto havia
sido extinto em abril de 2020.

Vias
tortas

Tributaristas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico não
gostaram das medidas.

“A questão do voto de qualidade
do Carf mostra que estão tentando conseguir arrecadação por vias tortas, já que
o voto de qualidade por si só não garante arrecadação. Se temos um julgamento
no Carf que está empatado, é um sinal de que existe uma controvérsia
grande, e isso, necessariamente, vai para o Judiciário. Portanto, a medida gera
mais insegurança jurídica. Um novo governo tem a oportunidade para discutir com
a sociedade uma reforma no contencioso administrativo”, afirma José
Roberto Covac
 Junior, sócio da Covac Sociedade de Advogados.

Alberto
Medeiros
, sócio tributarista do escritório TozziniFreire
Advogados, é outro crítico do pacote. “O fato de as alterações no
funcionamento do Carf terem sido anunciadas dentro do plano de recuperação
fiscal apresentado pelo novo governo, por si só, já é preocupante. A impressão
que fica é que a importantíssima função exercida pelo quase centenário tribunal
administrativo no controle da legalidade dos lançamentos tributários é vista
como rito de passagem na cobrança do crédito tributário.” 

João
Marcos Colussi
, do Mattos Filho, é cético em relação à ideia de
que o retorno do voto de qualidade resultará em aumento da arrecadação. “O
voto de qualidade para o Fisco não resultará em receita para a União, mas, sim,
na migração das discussões para o Poder Judiciário. Além da dificuldade que
enfrentaria no Congresso, uma medida nesse sentido contraria os argumentos do
próprio Ministério da Fazenda, que alegou que o voto de desempate em favor da
União era raramente utilizado no Carf. Se era raro, por que deveria ser
reinstituído?”, questiona ele.

Outro crítico do voto de qualidade
é Gabriel Neder, tributarista do Peixoto & Cury Advogados.
“A mudança desconsidera regra prevista no próprio Código Tributário
Nacional no sentido de que, em caso de dúvida sobre a interpretação da
legislação tributária que define infrações, deve se decidir em favor do
contribuinte (artigo 112 do CTN). Ou seja, o próprio empate entre os
julgadores revela dúvida sobre a interpretação da legislação tributária, de
modo que o voto de desempate em favor do contribuinte está alinhado ao que
dispõe a legislação tributária.”

Retorno
do voto de qualidade é encarado como um retrocesso pelos tributaristas



O doutor em Direito e presidente do
Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT), Igor
Mauler Santiago
, enxerga na volta do voto de qualidade falta de
criatividade.

“Se é para mudar, melhor seria
excluir a multa – onde há dúvida cabe punição – e manter o crédito suspenso,
sem necessidade de liminar ou garantia, até o fim da ação judicial, desde que
proposta pelo contribuinte até 30 dias após o fim do processo
administrativo”.

Litígio
zero?

O programa de parcelamento de dívidas tributárias também desagradou aos
especialistas. Para advogada Ana Paula Lui, do Mattos Filho, a iniciativa
não deve ter a adesão esperada pelo governo. “Ainda que os valores sejam
relevantes, a discussão deverá ser levada ao Poder Judiciário, com risco de
sucumbência à Fazenda Nacional”, avalia. 

Arthur
Barreto
, advogado tributarista do Donelli, Abreu Sodré e
Nicolai Advogados (DSA Advogados), por sua vez, acredita que o Litígio Zero,
aparentemente concebido nos moldes dos antigos programas do tipo Refis, pode
ser um passo atrás depois de uma importante evolução no modelo da transação
tributária.

“Há programas de refinanciamento
mais específicos, por exemplo, para abranger contribuintes afetados pela
pandemia – sendo necessário comprovar os danos causados pela emergência
sanitária às contas do contribuinte. Há também programas para pequenos
contribuintes e outras situações. Um programa mais amplo desestimula o bom
pagador de tributos.”

Erros
conceituais e lacunas

Para Reinaldo T. Moracci Engelberg, do Mattos Filho, o governo erra
ao eleger o Carf como grande vilão do Contencioso Administrativo. “A
‘recuperação fiscal’ apresentada pelo Ministério da Fazenda não
deveria olhar para o Carf como um cofre com potencial de arrecadação imediata.
O primeiro passo para a redução dos litígios federais seria não apontar o
Carf como um problema, mas fortalecer a sua paridade e independência.”

Por sua vez, Maria Danielle
Rezende de Toledo
, advogada especialista em Direito Tributário Contencioso
e sócia da banca Lira Advogados, destacou a ausência de medidas voltadas para
discussões aduaneiras. “E há contenciosos de valores elevados no Carf
sobre o assunto, como por exemplo interposição fraudulenta e valoração
aduaneira.”

Sem
culpa

Wesley Rocha, conselheiro do Carf e presidente da Associação dos
Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf (Aconcarf), lembra
que não é possível atribuir aos membros indicados pelos contribuintes a
culpa pelo fato de o estoque do órgão ter dobrado no último ano.

“Na apresentação feita pelo
Ministério da Fazenda, deixou-se de mencionar a paralisação dos auditores da
Fazenda e os efeitos da pandemia da Covid no órgão, em que tivemos mais de ano
com suspensão dos julgamentos.”

Segundo o Ministério da Fazenda, o
estoque de processos administrativos no Carf vem oscilando em torno de cem mil
desde 2018. Já o valor do estoque subiu de cerca de R$ 600 bilhões, entre
dezembro de 2015 e dezembro de 2019, para mais de R$ 1 trilhão, em outubro do
ano passado. (Rafa Santos – Conjur)

Foto: Ricardo Stuckert