Entre os milhões de
pessoas que, hoje, atacam-se verbal, moral e até fisicamente, na imprensa, nas
redes sociais e em protestos nas ruas, por conta do clima de ódio que se
estabeleceu em função do clima político em que vive o país, muita gente ainda
deve ter inscritos na memória os vestígios do que é viver sob uma ditadura
militar.
Outros
milhões, que também se agridem do mesmo modo, pegaram apenas o rescaldo dessa
ditadura, gente que nasceu já no regime militar e viveu pelo menos duas décadas
sem saber o que era uma eleição para a Presidência da República.
Até
chegar ao que nos acostumamos a chamar hoje de democracia, vieram etapas de
nomes estranhos. Os atos institucionais que aprofundaram a ditadura, os anos de
chumbo de Médici, a distensão, a reabertura, a frustração das diretas, as
indiretas, a morte de Tancredo, a posse de Sarney e, finalmente o primeiro voto
para presidente, o primeiro desses que hoje se estapeiam de dois lados de um
ringue com um traço no meio separando coxinhas e petralhas.
Elegeram
um caçador de marajás que, ainda por cima, gabava-se de ter o saco roxo,
codinome e atributo que já davam sinais de esquisitice suficiente para dar no
que deu. Uma geração chamada de caras pintadas foi considerada a antena da
consciência e da maturidade política do Brasil e levou a fama por ter varrido
(ou pensado que varreu) Fernando Collor do poder, lá nos idos de 1992.
PROSTÍBULO
Tanto
na luta contra a ditadura, como no processo de impeachment contra Collor e
agora nesse clima de instabilidade econômica e política repetido como cantilena
em todos os meios, o que aparece em comum é uma aposta numa teoria do consolo
de acolá, lá e aqui tudo está acontecendo para que o país renasça melhor, para
que as futuras gerações recebam um país decente, mais justo, honesto, digno.
Que
levantem a mão os jovens adultos que nasceram no Brasil em 1989, quando caía o
Muro de Berlim, Collor se ouriçava e comemorava-se a volta da democracia. Esses
homens e mulheres têm orgulho do país em que vivem hoje? A geração anterior
lhes deu o que lhes prometeu? Difícil enxergar sim para essas perguntas. A
ditadura caiu de podre e uma canalhice partidária confundiu o jogo político com
jogatina de prostíbulo, fenômeno que se arrasta até aqui.
Como se
já não vivêssemos atolados de metáforas, logo após depor sob condução
coercitiva, Lula anuncia à nação que ele é uma jararaca que está mais viva do
que nunca após terem tentado matá-la. O golpe de morte acertou-lhe o rabo, não
a cabeça.
Prudência
e sensatez parecem ter fugido do navio Brasil, cedendo lugar a ratos que riem,
fazem muito barulho e aprofundam o caos. Há um separatismo de boteco que clama
por pancada, sangue e chorume e embora desconheça o sentido da palavra
maniqueísmo, só em nome dela milita. Já começam a querer espancar jornalistas
nas ruas. E que fique claro: o descontrole é dos dois lados.
SERPENTES
Enquanto o assombro é geral com o poder que uma
ratazana bípede tem sobre o Legislativo, eis que entra em cena nesse teatro de
vampiros um bispo católico fazendo uma tradução torta da Bíblia e inserindo
nela a palavra jararaca, coincidentemente, claro, a mesma usada por Lula para
metaforizar-se. O bispo auxiliar da Diocese de Aparecida (SP), que atende pelo
doce e dócil nome de Dom Darci, conclamou os fiéis, na missa do fim de semana,
a perseguir e esmagar a cabeça das serpentes que se autodenominam jararacas,
como fez Maria, sem que o mal lhe tocasse.
Num país em que já se pega e mata e come, literalmente, em que
se chacina por gosto, tudo o que não se precisa é de um bispo que parece
inspirar-se mais no elenco de tresloucados do BBB, com seus tapas na cara, do
que no frescor do papa Francisco. É esse país de ódio e raiva que vai parir
coisa melhor? Por enquanto, o som da banda está mais favorável para as Ana
Paulas e os Dons Darcis. Para que tanta marra se a vida é um sopro?
Correio 24 HORAS
Malu Fontes é jornalista e professora de
jornalismo da Facom-Ufba