Ele se amontoa sobre o país. Hiperrealiza seus desejos, usa
aliados como escória. Sem álibi, mandou o genro do compadre desqualificar a
acusação, e deu errado. Segue trabalhando mal o luto. Um voo tão alto, uma
queda tão grande. Revelou-se político de comodidade, tirou vantagem da
desonestidade e alega princípios para abafar inconveniências. Chegou ao limite
de querer aproveitar da própria decadência.
Um
grupo e ele saem do Fórum seguindo na direção do passeio. Embora vários do
cortejo sejam mais altos e estejam à frente dele, qualquer pessoa que os
observe do outro lado da rua pode ver a cabeça dele ultrapassando por uma
cabeça a dos seus apoiadores. Não é perspectiva, é subalternidade. Lembra livro
de Willian Faulkner, Enquanto Agonizo, onde um pai brutal impõe a todos um
enterro sem fim, não deixando a vida de ninguém fluir sem ter de pensar no seu
egoísmo doentio.
A
calçada, esturricada pelos pisões do povo e pedras soltas, segue reta como um
fio de prumo até o pé do avião emprestado onde ele os deixará, indiferente aos
terrenos resvalantes que o levaram a escorregar. Antes de embarcar, mirando o
dilúvio, determina: meu reino por minha vitimização, façam ferver o coração,
vai ser longa a condolência. Preparem o caixão e, se der certo, enterrem, com a
toga preta do Supremo, o princípio da igualdade de todos perante a lei.
Alguns
aliados não aduladores sentiram que havia alguma coisa ruim. Nem em silêncio
era razoável aquela insensatez de celebrar como triunfo uma calamidade. Nem
apropriado apiedar-se de um político mais que do povo. Uns diziam que era
anomalia necrológio de homem vivo; outros, que não se chama crime de
perseguição; todos julgavam sinistro candidato cuja glória é ser condenado por
mentir.
Ele
estava se esvaziando rapidamente. Um tique nervoso, fruto de soberba banal, o
levava a referir-se a si mesmo na terceira pessoa. [Não há qualquer rival de [o
líder[ em todo o firmamento.[ Era assim mesmo que se chamava, [o líder],
apelido privado que incorporou ao nome, marca da sua ambiguidade pública.
Como
numa piada, arrumou advogado na ONU. Sentia-se um país. Não queria mais suar.
Botaram na cabeça dele que se é vontade de Deus que as pessoas tenham opinião
diferente sobre honestidade não cabe a ele discutir desígnios divinos. Suas
proezas entardeceram e começaram a alimentar uma ordem política incapaz de
produzir valores sociais. Vazio, deixou-se preencher pelo maior valor do mundo
moderno, o ouro de tolo, que lambuza no presente a consequência do futuro.
Quando
mais se encheu de medalhas, mas se esvaziou de ideias. [A abundância de diploma
acaba com o diploma], alguém alertou, e foi expulso da sala. E uma pessoa vazia
na política não é mais um político. Enchendo-se de autoelogios e fúria, logo
ele não sabe se é ou não é, ou que é que de fato é. Saiu do trilho, aumentou
necessidades, até que as dádivas deram por conhecidos seus favores.
Enfraqueceu
a autoridade por seu abuso e o hábito de confundir poder com relação e
intimidade. No mundo das decisões apressadas, dissimulações, das interdições
sobre as quais ninguém tem domínio, da liberdade irresponsável de ser o que
você quiser ser, a transgressão percebeu a melhor das convergências. Com a
autoridade participando, o erro ganha mais velocidade.
Seu
talento para a evasão o tornou conhecido como aquele político [veloz estruturador
de negócios e soluções]. Logo que recebeu a resposta da carta enviada aos
brasileiros donos de banco, escrita em inglês, percebeu que pecado-salvação é
mera questão de palavra. Harmonizou-se com a parceria de talentosos ocultadores
de intenções para montar as ladainhas, a lenga-lenga a que deu o nome de
política de governo.
Quando
a Justiça abriu a porta dos seus transtornos desesperadores, ele já havia caído
na mais sedutora armadilha da política atual, o dinheiro fácil, e não quis
reconhecer o que fez. Saiu em desespero para pagar a promessa de 40 anos atrás.
Mas sem dizer o que deveria ter dito ao juiz – o que o deteria na certeza de
que alcançar seu objetivo primordial de ser respeitado, ser alguma coisa nova,
é que compunha seu élan vital – pressupôs que a condição de vítima
evitaria o caminho da desmoralização. Ele voltou a suar, como se estivesse
espumando, feito um cavalo desembestado, convocou adoradores, dependentes, para
a velha modalidade de ação heroica – camisa de partido, candidatura, comício,
farisaísmo – na tentativa desesperada de incinerar a sentença e botar fogo na
pavorosa jornada da Justiça de ousar apontar o dedo para quem sempre fez o que
quis e nunca foi tão adequadamente contrariado.
Quando
ouviu [estamos aqui e você tem de lidar conosco], percebeu que escondera dos
amigos o que os inimigos já sabiam. Falhou em grandeza, foi-se a profecia. Quem
dera fosse capaz de suportar o sucesso com mais honestidade e a adversidade com
mais autocontrole.
Um
partido de esquerda moderno e com capacidade de diálogo deve parar de tratar de
forma errada o erro. E reconhecer que um período de governo com um presidente
deposto, três ex-presidentes da Câmara, senadores e inúmeros ministros de
Estado presos ou processados, dirigentes partidários e governadores confinados
ou envolvidos, a maior empresa do País dilapidada, a autoridade olímpica
nacional presa, o bilionário do período encarcerado, a Copa investigada, fundos
de pensão arruinados, o BNDES um clube de amigos, grandes empresários
condenados, frugal intimidade com ditadores, etc., não foi um período virtuoso.
O
que [o líder] quer é o refluxo da identidade perdida, fugir da responsabilidade
confinado na condição de perseguido. Pelo alto, espalha simulacros de habeas
corpus, certo de que a Justiça dos privilegiados prevalece e o ressuscita, como
Lázaro. Por baixo, mantém agitada a agonia, seguro de que a manipulação do povo
reabsorve a desordem que ele criou e a dissolve na sociedade até sumir sua
autoria.
Paulo Delgado, sociólogo e
ex-deputado federal pelo PT-MG, é copresidente do Conselho de Economia,
Sociologia e Política da Fecomercio-SP. E-mail: contato@paulodelgado.com.br
Artigo publicado originalmente
no jornal O Estado de S. Paulo.
Republicado pelo Diário do Poder