A série de reportagens sobre os
60 anos do golpe militar obrigava a tentativa de aproximação com uma das
protagonistas dessa história: a ex-primeira-dama Maria Thereza Goulart, que foi
casada com João Goulart, o presidente deposto em 1964. Depois de dias do
contato com a família e uma semana após o envio de algumas perguntas, a viúva
de Jango atendeu ao pedido do Correio e concedeu uma cobiçada entrevista.
Dona Maria Thereza escolheu uma
maneira própria, até surpreendente, de atender à reportagem. Suas respostas
foram remetidas de forma manuscrita, em duas folhas de papel. O conteúdo e
essas páginas, nesse formato, ganharam ares de documento, com uma caligrafia
íntegra. A protagonista ainda pediu desculpas porque a letra não teria saído a
seu feitio, um pouco diferente, com o papel sob uma mesa cambaleante.
Na entrevista, Maria Thereza
Goulart lembrou daquele período, contou que não imaginavam que o golpe duraria
tanto nem que o exílio fosse tão longo. Jango só retornou ao Brasil depois de
sua morte, em 6 de dezembro de 1976, na Argentina. O exílio da família passou
também pelo Uruguai.
O Correio abordou com a
entrevistada a postura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que determinou
a seu governo não organizar ato ou manifestação sobre o golpe. E fez sua
crítica: “Ele tem o direito de pensar e dizer o que quiser, mas suas declarações
foram desnecessárias neste momento”. Além do veto a eventos, o chefe do
Executivo declarou que iria “remoer” esse passado e que vale mesmo é
olhar para a frente.
A ex-primeira-dama decidiu
participar com intensidade da lembrança dos 60 anos do golpe. Com os filhos
João Vicente e Denize, estará, amanhã, na Marcha da Democracia, que fará o
caminho inverso das tropas que partiram de Juiz de Fora (MG) para o Rio de Janeiro
com o objetivo de derrubar João Goulart. Confira a entrevista:
O golpe de Estado que derrubou
o presidente João Goulart completa 60 anos. Que filme passa na memória da
senhora dessa história marcante do país?
Eu tinha apenas 24 anos e não
conseguia entender o porquê daquele momento de tantas injustiças e perseguições
a uma pessoa que lutava tanto, pensando sempre em tudo que seria melhor para o
Brasil e para o povo brasileiro. Era tudo que ele idealizava e desejava
realizar.
O Brasil passou 21 anos numa
ditadura que depôs um presidente, fechou o Congresso, instalou a censura e
torturou, matou e desapareceu com os opositores do regime militar. Era de se
imaginar, quando o golpe eclodiu que o país mergulharia numa situação como
essa?
O golpe de 64, no começo, parecia
que não seria tão longo, mas, depois de certo tempo, sentimos que nosso exílio
seria mais longo do que pensávamos. Jango, então, começou a organizar nossas
vidas e seu trabalho. Sabendo dos atos violentos que eram praticados no Brasil,
sentia grande preocupação e tristeza, com as pessoas que sofriam no nosso país.
Em algum momento a senhora
alimentou o retorno de Jango ao poder? Até mesmo numa nova eleição?
Não. Nunca acreditei nesse
retorno imediato. A hostilidade era cruel, mas nunca imaginei que, lutando
tanto pela sobrevivência em outro país, ele fosse voltar morto para sua pátria
que tanto amava.
Qual foi o papel da sociedade
civil, seu peso no golpe militar?
A sociedade civil optou para
ficar ao lado dos ditadores. Nos sentíamos totalmente abandonados. Aquela
Marcha da Família em São Paulo foi um momento de expressiva manifestação do
ódio. Esse episódio marcou minha vida para sempre, de maneira muita intensa.
O presidente Lula vetou atos e
manifestações oficiais de lembrança críticas ao golpe. Setores do governo já
preparavam eventos, e foram cancelados. O que a senhora achou dessa decisão do
Lula? A decepcionou?
Ele tem o direito de pensar e
dizer o que quiser, mas suas declarações foram desnecessárias neste momento.
O Brasil viveu uma nova
tentativa de golpe em 2022. Revelações feitas agora mostram que o ex-presidente
arquitetou se manter no poder depois de ter sido derrotado nas urnas. E depois
vieram os ataques de 8 de janeiro de 2023. Qual é a comparação possível de se
fazer entre o que ocorreu em 1964 e esses fatos recentes?
São dois movimentos diferentes. O
golpe de 64 também foi uma situação externa, que deu mais força aos
acontecimentos. (Evandro Éboli/Correio Brasiliense).
Foto: Menorial da
Democracia/Reprodução